17.10.15

Interpretação constitucional - Vagney Palha de Miranda

Com prazer publico mais um texto do caro Vagney Palha de Miranda, colega de faculdade e da luta diária da advocacia. Apreciem.



O ESTADO E A COMUNIDADE: SOCIEDADE ABERTA DE INTÉRPRETES.


A Constituição Federal é a lei suprema da nação, de forma que os intérpretes e os destinatários das normas constitucionais devem orientar-se pelo princípio de sua superioridade hierárquica de um lado e pelo princípio da plena juridicidade de todas as normas – regras e princípios – da Constituição, de outro.
A Carta Magna é composta não só de normas que estruturam o Estado e distribuem competências funcionais e legislativas, mas também de normas que criam direitos subjetivos contra o Estado e contra particulares.
A Constituição é também um grande projeto de nação que, além de representar ruptura com valores e padrões anteriores, elabora um grande projeto sócio-político, voltado para transformar a realidade social e proteger as gerações futuras contra ações indesejadas dos agentes sociais e econômicos atuais, especialmente quando protege o meio ambiente.
A par do exposto, impende observar o preâmbulo da Constituição Federal, verbis:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

Veja-se que a Constituição Cidadã instituiu “um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça”, razão por que a interpretação constitucional deve considerar esses vetores axiológicos trazidos no preâmbulo.
Dessa forma, a norma constitucional destina-se a regular ações, a estruturar a Administração Pública, limitar o poder do Estado, criar direitos e garantir à liberdade e igualdades de todos, além de fixar os grandes projetos políticos, sociais, culturais e econômicos a serem efetivados pelo Estado.
De Acordo com Peter Häberle, existe um círculo extenso de intérpretes da Carta Maior. Considera ainda que a Constituição é uma luz, com função diretiva e transformadora de sorte que todas as forças reais e integradoras dos propósitos constitucionais devem ser seus intérpretes.
A Peter Häberle compreende a sociedade aberta de intérpretes a partir da constatação de que os destinatários das normas são necessariamente seus principais intérpretes, haja vista que precisam sujeitar-se as normas constitucionais na práxis em geral.
Trata-se da conhecida teoria de sociedade aberta de intérpretes, pela qual na teoria da interpretação constitucional deve se levar em conta “o sentido puramente constitucional da ciência da experiência”.
Para Häberle, a interpretação constitucional tradicional deve alargar-se para abarcar também as funções estatais, os órgãos estatais, autor e réu, recorrente e recorrido, parecerista, peritos, os grupos de pressão organizados, os participantes em procedimento administrativo organizado, a opinião pública democrática e pluralista, além do processo político, mídia e jornalista.
A interpretação constitucional é um processo criativo a partir do qual o intérprete modela a partir do texto o melhor direito para a solução do caso concreto.
Dessa forma, repetimos as perguntas de Lenio Luiz Steck: “como aplicar de forma adequada a Constituição”? e “como entender a Constituição como um documento fundamentalmente direcionado à defesa dos direitos fundamentais do cidadão”?
Aqui, cumpre, contudo, repetir a advertência de Laurence Tribe e Michael Dorf segundo o qual “a existência de diferenças interpretativas em qualquer texto é a evidência mais capacitada para sugerir que estejam em andamento outras coisas além de pura interpretação”.[1]
 Dessa forma que, temos de estar alertas contra as manipulações ideológicas do intérprete, sem, contudo, perder de vista que a norma jurídica normalmente tem mais de um sentido. Assim, o intérprete tem liberdade para, fundamentadamente, adotar diferentes resultados, em face, principalmente, da possibilidade de interpretar conjuntamente mais de um princípio na solução de um caso concreto.
Mas, somos ainda tentados a asseverar que o fato, ou caso concreto, deve exigir o melhor resultado ou resultado mais justo, razão por que as possibilidades de divergências não são tão amplas como querem muitos.
A concepção de uma sociedade aberta de intérpretes decorre do fato evidente e iniludível de que a Constituição é a lei máxima do Estado e de que a Lei Maior, além de estruturar o Estado e distribuir competências funcionais e legislativas, cria direitos subjetivos e traça os grandes projetos políticos, sociais, culturais e econômicos a serem implementados pelo Estado. Mais: no caso brasileiro, os Direitos Fundamentais têm eficácia horizontal direta e imediata, de forma que qualquer pessoa, além do Estado, pode violar direito de outrem, portanto, todos são intérpretes constitucionais.
De acordo Peter Häberle, a interpretação Constitucional reduzia-se aos órgãos estatais e aos participantes do processo judicial. Entretanto, preleciona o mestre alemão que a interpretação constitucional é um processo que interessa a todos, de modo que a sociedade aberta de intérpretes inclui todos os destinatários das normas, entre os quais o estado em seu agir administrativo e os agentes privados em suas relações intersubjetivas.
Ademais, a interpretação constitucional não pode dissociar da realidade social e dos objetivos políticos, sociais, econômicos e culturais da nação ainda que não expressamente positivados.
A esse propósito cumpre trazer a lume, o seguinte excerto da obra Hermenêutica Constitucional de Peter Häberle, verbatim:

A estrita correspondência entre vinculação (à constituição) e legitimação para a interpretação perde, todavia, o seu poder de expressão quando se consideram os novos conhecimentos à teoria da teoria da interpretação: interpretação é um processo aberto. Não é, pois, um processo de passiva submissão, nem se confunde com a recepção de uma ordem. A interpretação conhece possibilidades e alternativas diversas. A vinculação se converte em liberdade na medida em que se reconhece que a nova orientação hermenêutica consegue contrariar a ideologia da subsunção. A ampliação do círculo hermenêutico aqui sustentada é apenas a consequência da necessidade, por todos defendidas, de integração da realidade no processo de interpretação. É o que os intérpretes em sentido amplo compreendem essa realidade pluralista. Se se compreende que a norma não é uma decisão prévia, simples e acabada, há se indagar sobe os participantes em no seu desenvolvimento funcional, sobre as forças in lawpublicaction (personalização, pluralização da intepretação constitucional).[2]

Assim, nessa concepção de sociedade aberta de intérpretes, a administração pública, os órgãos judiciais (juízes e tribunas), os funcionários públicos, os parlamentares, os particulares, tornam-se intérpretes constitucionais.
Portanto, de acordo com Peter Häberle, interpretar não é um processo passivo de submissão, nem tampouco e exclusiva subsunção, mormente quando se trata de princípios enquanto mandamentos de otimização. Depois, tem-se de levar em conta uma sociedade aberta de intérpretes enquanto destinatária da norma, incluindo qualquer do povo, a administração pública, o poder legislativo como criador das normas infraconstitucionais e o poder judiciário em suas funções atípicas.
A intepretação parte do pressuposto de que o texto não é norma, mas que norma deve necessariamente provir do sentido de algum dos seus possíveis sentidos, de forma que o texto não pode ser ignorado no processo hermenêutico.
Portanto, texto e norma estão imbricados.
É crucial a noção de Peter Häberle na qual interpretar é inserir a realidade no processo interpretativo, de modo que o processo interpretativo consiste em atualizar a constituição para as gerações presentes, mantendo-se, contudo, os fundamentos da Constituição, para que a interpretação não reflita apenas a ideologia do intérprete.
 Veja-se que não só a administração pública precisa concretizar as normas constitucionais, como também o Poder Legislativo são legítimos intérpretes constitucionais.
Assevera Peter Häberle que “a vinculação judicial à lei e independência pessoal e funcional dos juízes não podem escamotear o fato de que o Juiz interpreta a Constituição na esfera pública e na realidade”.[3] Disso ressai que o Juiz interpreta a Constituição, de que o objeto do processo interpretativo é o texto constitucional, do qual deve emergir a norma. Além disso, a interpretação deve atualizar o texto para atender as necessidades da realidade social, visto que a constituição é a lei suprema da nação, de modo que ela deve ser a força motriz para assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça.
As cláusulas pétreas impõem ao Poder Legislativo o dever de não legislar contra as normas que elas protejam. Além disso, a Constituição Federal é pródiga de norma de eficácia limitada, de modo que o Constituinte impõe expressa ou implicitamente o dever de legislar sob pena de inconstitucionalidade por omissão.
Para Peter Häberle, os intérpretes são orientados pela teoria e pela experiência social, acrescentando que a práxis não é conformada pelo intérprete oficial, mas que todos são potencialmente interpretes da Constituição na perspectiva de um processo público e da vinculação de todos à lei maior.
Assevera que a práxis social é uma força legitimadora da interpretação constitucional.
Nesse diapasão, o princípio democrático e da dignidade da pessoa humana devem ser vetores axiológicos concretizadores da teoria da sociedade aberta de intérpretes.
Ensina Peter Häberle que a interpretação é o meio por que o hermeneuta busca fazer o texto constitucional interagir com a realidade social na perspectiva conciliadora entre o real, o possível e o necessário, verbis:

Do ponto de vista teorético-constitucional, a legitimação fundamental das forças pluralista da sociedade para participar da interpretação constitucional reside no fato de que essas forças representam um pedaço da publicidade e da realidade da Constituição, não podendo ser tomada com fatos brutos, mas como elementos dentro do quadro da Constituição: a integração, pelo menos indireta, da res publica na interpretação constitucional em geral é expressão e consequência da orientação constitucional aberta no campo de tensão do possível, do real e do necessário.[4]

Além disso, no caso brasileiro, o amplo catálogo de direitos fundamentais, os direitos sociais, culturais econômicos produzem elevado influxo normativo sobre os aspectos da vida social.
Aliado a tudo isso, temos ainda que atentar para do fato segundo o qual a Constituição é a lei suprema da nação, além do princípio da unidade da Constituição e da máxima efetividade das normas constitucionais, que são a força motriz propulsora do desenvolvimento jurídico, social, cultural e econômico.
Para Peter Häberle, o princípio democrático exige que o povo seja parte importante e legitimadora do processo de interpretação constitucional.
Assim, o intérprete oficial da Constituição, ainda que seja uma voz muito importante em todo o processo hermenêutico, não é o único.
Em resumo, a Interpretação Constitucional, visto sob a perspectiva de um Estado democrático, deve ser pluralista e integrar todas as pessoas potencialmente sujeitas aos pressupostos normativos da Constituição.

INTÉRPRETES OFICIAIS DA CONSTITUIÇÃO E A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL.


No Brasil, lado do controle concentrado de constitucionalidade, temos o controle difuso por meio do qual qualquer juiz ou tribunal é responsável pelo controle de constitucionalidade das leis e atos normativos do Estado.
Entretanto, Compete ao Supremo Tribunal Federal a última palavra em termos de hermenêutica constitucional.
O Controle concentrado de constitucionalidade fica a cargo da Corte Suprema, que detém também competência recursal para apreciar em última instância as decisões judiciais de Tribunais de Justiça dos Estados, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais Superiores, que violem diretamente dispositivos da Constituição Federal. Cumpre observar que os Tribunais de Justiça detêm competência para exercer o controle concentrado à luz da Constituição Estadual.
De acordo com o artigo 102, da Carta Magna, compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe processar e julgar, originariamente a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões e julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida contrariar dispositivo desta Constituição, declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal, julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição e julgar válida lei local contestada em face de lei federal.
No direito Brasileiro, qualquer juiz ou tribunal tem atribuição ou competência para promover o controle de constitucionalidade de lei ou atos normativos.
Além disso, qualquer juiz ou tribunal é intérprete constitucional, de modo que todo demanda judicial proposta por particulares pode ser resolvida à luz de regras e princípios constitucionais, reservando, contudo, ao Supremo a palavra final a respeito do texto constitucional.
Cumpre notar que o Supremo Tribunal Federal tem ainda poder de criar súmulas vinculantes.
É de notar ainda que no que tange à competência recursal, a competência do Supremo Tribunal se restringe àquelas hipóteses nas quais se verifica repercussão geral, sob a perspectiva social, econômica ou jurídica, de modo que nem sempre o STF terá competência recursal para apreciar violação direta a dispositivo Constitucional, ainda que se trate de violação de direitos fundamentais.
Nesse passo, cumpre salientar que o Poder Legislativo é um importante intérprete Constitucional, não somente no exercício da competência constitucional derivada, mas também enquanto legislador infraconstitucional, principalmente em face da configuração de cláusulas pétreas, que excluem certas matérias constitucionais do Poder Legislativo.
Além disso, a Administração Pública lato sensu tem o escopo de concretizar não apenas as normas constitucionais, mas também as normas infraconstitucionais, de sorte que a ela compete também tarefa de interpretação constitucional, visto que todo processo de aplicação e concretização de norma pressupõe o processo interpretativo antecedente.
Por fim, ao STF, como órgão de cúpula do Judiciário com competência expressa de guardião da Constituição Federal, cabe determinar a interpretação, de forma definitiva, da Constituição Federal.




[1]TRIBE, Laurence; DORF Michael. Hermenêutica Constitucional. Belo Horizonte: DelRey, 2007, pag. 44.
[2]HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, pag. 30.
[3]HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, pag. 31.
[4]HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, pag. 33.
 

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