O ESTADO E A COMUNIDADE: SOCIEDADE ABERTA DE INTÉRPRETES.
A Constituição Federal é a lei
suprema da nação, de forma que os intérpretes e os destinatários das normas
constitucionais devem orientar-se pelo princípio de sua superioridade
hierárquica de um lado e pelo princípio da plena juridicidade de todas as
normas – regras e princípios – da Constituição, de outro.
A Carta Magna é composta não só de
normas que estruturam o Estado e distribuem competências funcionais e
legislativas, mas também de normas que criam direitos subjetivos contra o
Estado e contra particulares.
A Constituição é também um grande
projeto de nação que, além de representar ruptura com valores e padrões
anteriores, elabora um grande projeto sócio-político, voltado para transformar
a realidade social e proteger as gerações futuras contra ações indesejadas dos
agentes sociais e econômicos atuais, especialmente quando protege o meio
ambiente.
A par do exposto, impende observar o
preâmbulo da Constituição Federal, verbis:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos
em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático,
destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a
liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça
como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos,
fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional,
com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus,
a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
Veja-se que a Constituição Cidadã
instituiu “um Estado Democrático, destinado
a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça”, razão por
que a interpretação constitucional deve considerar esses vetores axiológicos
trazidos no preâmbulo.
Dessa forma, a norma constitucional
destina-se a regular ações, a estruturar a Administração Pública, limitar o
poder do Estado, criar direitos e garantir à liberdade e igualdades de todos,
além de fixar os grandes projetos políticos, sociais, culturais e econômicos a
serem efetivados pelo Estado.
De Acordo com Peter Häberle,
existe um círculo extenso de intérpretes da Carta Maior. Considera ainda
que a Constituição é uma luz, com função diretiva e transformadora de sorte que
todas as forças reais e integradoras dos propósitos constitucionais devem ser
seus intérpretes.
A Peter Häberle compreende a sociedade aberta de
intérpretes a partir da constatação de que os destinatários das normas são
necessariamente seus principais intérpretes, haja vista que precisam
sujeitar-se as normas constitucionais na práxis em geral.
Trata-se da conhecida teoria de sociedade aberta
de intérpretes, pela qual na teoria da interpretação constitucional deve se levar
em conta “o sentido puramente constitucional da ciência da experiência”.
Para Häberle, a interpretação constitucional
tradicional deve alargar-se para abarcar também as funções estatais, os órgãos
estatais, autor e réu, recorrente e recorrido, parecerista,
peritos, os grupos de pressão organizados, os participantes em procedimento
administrativo organizado, a opinião pública democrática e pluralista, além do
processo político, mídia e jornalista.
A interpretação constitucional é um processo
criativo a partir do qual o intérprete modela a partir do texto o melhor
direito para a solução do caso concreto.
Dessa forma, repetimos as perguntas de Lenio Luiz
Steck: “como aplicar de forma adequada a Constituição”? e “como entender a
Constituição como um documento fundamentalmente direcionado à defesa dos
direitos fundamentais do cidadão”?
Aqui, cumpre, contudo, repetir a advertência de
Laurence Tribe e Michael Dorf segundo o qual “a existência de diferenças
interpretativas em qualquer texto é a evidência mais capacitada para sugerir
que estejam em andamento outras coisas além de pura interpretação”.[1]
Dessa forma
que, temos de estar alertas contra as manipulações ideológicas do intérprete,
sem, contudo, perder de vista que a norma jurídica normalmente tem mais de um
sentido. Assim, o intérprete tem liberdade para, fundamentadamente, adotar
diferentes resultados, em face, principalmente, da possibilidade de interpretar
conjuntamente mais de um princípio na solução de um caso concreto.
Mas, somos ainda tentados a asseverar que o fato,
ou caso concreto, deve exigir o melhor resultado ou resultado mais justo, razão
por que as possibilidades de divergências não são tão amplas como querem
muitos.
A concepção de uma sociedade aberta de intérpretes
decorre do fato evidente e iniludível de que a Constituição é a lei máxima do
Estado e de que a Lei Maior, além de estruturar o Estado e distribuir competências
funcionais e legislativas, cria direitos subjetivos e traça os grandes projetos
políticos, sociais, culturais e econômicos a serem implementados pelo Estado. Mais:
no caso brasileiro, os Direitos Fundamentais têm eficácia horizontal direta e
imediata, de forma que qualquer pessoa, além do Estado, pode violar direito de
outrem, portanto, todos são intérpretes constitucionais.
De acordo Peter Häberle, a interpretação
Constitucional reduzia-se aos órgãos estatais e aos participantes do processo
judicial. Entretanto, preleciona o mestre alemão que a interpretação
constitucional é um processo que interessa a todos, de modo que a sociedade
aberta de intérpretes inclui todos os destinatários das normas, entre os quais
o estado em seu agir administrativo e os agentes privados em suas relações
intersubjetivas.
Ademais, a interpretação constitucional não pode
dissociar da realidade social e dos objetivos políticos, sociais, econômicos e
culturais da nação ainda que não expressamente positivados.
A esse propósito cumpre trazer a lume, o seguinte
excerto da obra Hermenêutica Constitucional de Peter Häberle, verbatim:
A estrita correspondência entre vinculação (à
constituição) e legitimação para a interpretação perde, todavia, o seu poder de
expressão quando se consideram os novos conhecimentos à teoria da teoria da interpretação:
interpretação é um processo aberto. Não é, pois, um processo de passiva
submissão, nem se confunde com a recepção de uma ordem. A interpretação conhece
possibilidades e alternativas diversas. A vinculação se converte em liberdade
na medida em que se reconhece que a nova orientação hermenêutica consegue
contrariar a ideologia da subsunção. A ampliação do círculo hermenêutico aqui
sustentada é apenas a consequência da necessidade, por todos defendidas, de
integração da realidade no processo de interpretação. É o que os intérpretes em
sentido amplo compreendem essa realidade pluralista. Se se compreende que a
norma não é uma decisão prévia, simples e acabada, há se indagar sobe os
participantes em no seu desenvolvimento funcional, sobre as forças in
lawpublicaction (personalização, pluralização da intepretação constitucional).[2]
Assim, nessa concepção de sociedade aberta de
intérpretes, a administração pública, os órgãos judiciais (juízes e tribunas),
os funcionários públicos, os parlamentares, os particulares, tornam-se
intérpretes constitucionais.
Portanto, de acordo com Peter Häberle, interpretar
não é um processo passivo de submissão, nem tampouco e exclusiva subsunção,
mormente quando se trata de princípios enquanto mandamentos de otimização.
Depois, tem-se de levar em conta uma sociedade aberta de intérpretes enquanto
destinatária da norma, incluindo qualquer do povo, a administração pública, o
poder legislativo como criador das normas infraconstitucionais e o poder
judiciário em suas funções atípicas.
A intepretação parte do pressuposto de que o texto
não é norma, mas que norma deve necessariamente provir do sentido de algum dos
seus possíveis sentidos, de forma que o texto não pode ser ignorado no processo
hermenêutico.
Portanto, texto e norma estão imbricados.
É crucial a noção de Peter Häberle na qual
interpretar é inserir a realidade no processo interpretativo, de modo que o processo
interpretativo consiste em atualizar a constituição para as gerações presentes,
mantendo-se, contudo, os fundamentos da Constituição, para que a interpretação
não reflita apenas a ideologia do intérprete.
Veja-se que
não só a administração pública precisa concretizar as normas constitucionais,
como também o Poder Legislativo são legítimos intérpretes constitucionais.
Assevera Peter Häberle que “a vinculação judicial
à lei e independência pessoal e funcional dos juízes não podem escamotear o
fato de que o Juiz interpreta a Constituição na esfera pública e na realidade”.[3]
Disso ressai que o Juiz interpreta a Constituição, de que o objeto do processo
interpretativo é o texto constitucional, do qual deve emergir a norma. Além
disso, a interpretação deve atualizar o texto para atender as necessidades da
realidade social, visto que a constituição é a lei suprema da nação, de modo
que ela deve ser a força motriz para assegurar o exercício dos direitos sociais
e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a
igualdade e a justiça.
As cláusulas pétreas impõem ao Poder Legislativo o
dever de não legislar contra as normas que elas protejam. Além disso, a
Constituição Federal é pródiga de norma de eficácia limitada, de modo que o
Constituinte impõe expressa ou implicitamente o dever de legislar sob pena de
inconstitucionalidade por omissão.
Para Peter Häberle, os intérpretes são orientados
pela teoria e pela experiência social, acrescentando que a práxis não é
conformada pelo intérprete oficial, mas que todos são potencialmente
interpretes da Constituição na perspectiva de um processo público e da
vinculação de todos à lei maior.
Assevera que a práxis social é uma força
legitimadora da interpretação constitucional.
Nesse diapasão, o princípio democrático e da
dignidade da pessoa humana devem ser vetores axiológicos concretizadores da
teoria da sociedade aberta de intérpretes.
Ensina Peter Häberle que a interpretação é o meio
por que o hermeneuta busca fazer o texto constitucional interagir com a
realidade social na perspectiva conciliadora entre o real, o possível e o
necessário, verbis:
Do ponto de vista teorético-constitucional, a
legitimação fundamental das forças pluralista da sociedade para participar da
interpretação constitucional reside no fato de que essas forças representam um
pedaço da publicidade e da realidade da Constituição, não podendo ser tomada
com fatos brutos, mas como elementos dentro do quadro da Constituição: a
integração, pelo menos indireta, da res publica na interpretação constitucional
em geral é expressão e consequência da orientação constitucional aberta no
campo de tensão do possível, do real e do necessário.[4]
Além disso, no caso brasileiro, o amplo catálogo
de direitos fundamentais, os direitos sociais, culturais econômicos produzem
elevado influxo normativo sobre os aspectos da vida social.
Aliado a tudo isso, temos ainda que atentar para
do fato segundo o qual a Constituição é a lei suprema da nação, além do
princípio da unidade da Constituição e da máxima efetividade das normas
constitucionais, que são a força motriz propulsora do desenvolvimento jurídico,
social, cultural e econômico.
Para Peter Häberle, o princípio democrático exige
que o povo seja parte importante e legitimadora do processo de interpretação
constitucional.
Assim, o intérprete oficial da Constituição, ainda
que seja uma voz muito importante em todo o processo hermenêutico, não é o
único.
Em resumo, a Interpretação Constitucional, visto
sob a perspectiva de um Estado democrático, deve ser pluralista e integrar
todas as pessoas potencialmente sujeitas aos pressupostos normativos da
Constituição.
INTÉRPRETES OFICIAIS DA CONSTITUIÇÃO E A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL.
No Brasil, lado do controle
concentrado de constitucionalidade, temos o controle difuso por meio do qual
qualquer juiz ou tribunal é responsável pelo controle de constitucionalidade
das leis e atos normativos do Estado.
Entretanto, Compete ao Supremo Tribunal
Federal a última palavra em termos de hermenêutica constitucional.
O Controle concentrado de constitucionalidade
fica a cargo da Corte Suprema, que detém também competência recursal para
apreciar em última instância as decisões judiciais de Tribunais de Justiça dos
Estados, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais Superiores, que
violem diretamente dispositivos da Constituição Federal. Cumpre observar que os
Tribunais de Justiça detêm competência para exercer o controle concentrado à luz
da Constituição Estadual.
De acordo com o artigo 102, da Carta
Magna, compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da
Constituição, cabendo-lhe processar e julgar, originariamente a ação direta de
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação
declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal, a
reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de
suas decisões e julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em
única ou última instância, quando a decisão recorrida contrariar dispositivo
desta Constituição, declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal,
julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição
e julgar válida lei local contestada em face de lei federal.
No direito Brasileiro, qualquer juiz
ou tribunal tem atribuição ou competência para promover o controle de
constitucionalidade de lei ou atos normativos.
Além disso, qualquer juiz ou tribunal
é intérprete constitucional, de modo que todo demanda judicial proposta por
particulares pode ser resolvida à luz de regras e princípios constitucionais,
reservando, contudo, ao Supremo a palavra final a respeito do texto
constitucional.
Cumpre notar que o Supremo Tribunal
Federal tem ainda poder de criar súmulas vinculantes.
É de notar ainda que no que tange à
competência recursal, a competência do Supremo Tribunal se restringe àquelas
hipóteses nas quais se verifica repercussão geral, sob a perspectiva social,
econômica ou jurídica, de modo que nem sempre o STF terá competência recursal
para apreciar violação direta a dispositivo Constitucional, ainda que se trate
de violação de direitos fundamentais.
Nesse passo, cumpre salientar que o
Poder Legislativo é um importante intérprete Constitucional, não somente no
exercício da competência constitucional derivada, mas também enquanto
legislador infraconstitucional, principalmente em face da configuração de
cláusulas pétreas, que excluem certas matérias constitucionais do Poder
Legislativo.
Além disso, a Administração Pública lato
sensu tem o escopo de concretizar não apenas as normas constitucionais, mas
também as normas infraconstitucionais, de sorte que a ela compete também tarefa
de interpretação constitucional, visto que todo processo de aplicação e
concretização de norma pressupõe o processo interpretativo antecedente.
Por fim, ao STF, como órgão de cúpula
do Judiciário com competência expressa de guardião da Constituição Federal,
cabe determinar a interpretação, de forma definitiva, da Constituição Federal.
[1]TRIBE, Laurence; DORF Michael. Hermenêutica Constitucional. Belo Horizonte: DelRey,
2007, pag. 44.
[2]HÄBERLE, Peter. Hermenêutica
Constitucional. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, pag. 30.
[3]HÄBERLE, Peter. Hermenêutica
Constitucional. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, pag. 31.
[4]HÄBERLE, Peter. Hermenêutica
Constitucional. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, pag. 33.
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