31.5.15

A reprodução humana.

O homem, racional, parece se distanciar cada vez mais do que chamou de natureza. Poluição, devastação das florestas, produtos artificiais, grandes cidades.
As advertências constantes da extinção da espécie, a continuarmos nosso modo de vida, surtem pouco ou nenhum efeito na consciência humana. O esforço do sustentável falha. Não queremos dispor do conforto moderno.
Entretanto, a preservação do ser vivo bípede dotado de razão continua. Apesar das dificuldades nascem bebês. A taxa de natalidade mundial está longe de sofrer qualquer tipo de controle generalizado e, assim, qualquer forma de retração significativa.
Reproduzir, em regra, é natural. Basta o encontro da fertilidade com a copulação. Nove meses depois mais um ser humano.
A questão a ser enfrentada aqui é quão normal é a gestação para nossos semelhantes. Por conta desse distanciamento da natureza (somos e ela é – são dois), ter ela no ventre é algo desconectado do cotidiano. Não parece natural, é diferente de tudo, não soa humano.
Escrevo, aliás, como pai. A mãe, porém, ao meu lado, confirma. A maternidade tem começo, meio e a espera pelo término, abstrato, é surpreendente. A natureza bate na porta, entra e não deixará os cômodos do homem.
Todas as conquistas tecnológicas, as descobertas científicas, a história, perdem muito seu sentido. A gestação, única, é desconectada do homem. Pede licença, paciência, força e fé. Esperança de novo entendimento entre humano e natureza. Volta da unidade. Do natural. Do normal. Do princípio.
Acima de tudo, não somos filhos, nem pais. Somos a própria natureza. Façamos as pazes com ela. 

26.5.15

Escrever como profissão.

O balcão é frio. O julgador é técnico. A vida é longa. A praia é morna.
O convite do escritor vem simples: escreva. Prazo, estilo, molde, conteúdo. O trabalho-prazer, o tempo-proveito. Não é assim.
Escrever hoje é fácil. Quero, procuro, passo a ideia em tinta. Transformação. Amanhã, não. Gostaria de caber em livro maior, com superior tiragem, mais publicidade. Usufruir.
No entanto, o suor nasce dele mesmo. Começo. Caneta, papel, reflexão, paixão dosada. Dúvidas. Componho. Releio, corrijo, reviso, risco, insiro, mudo. Desisto, recomeço. Outro dia. Negativo. Na mesma hora.
A palavra vem. Sozinha. Com conectivos, fraseada, pontuada para mais para menos. Estudada.
Enfim, escrever não é tão difícil. O desafio é outro. É o outro. O texto nasce morto. Engavetado tem pudores. As campainhas silenciam, o verbo apodrece. Publicar é divertido.
Por isso, escrevemos sim todos os dias. Falta-nos coragem. Teimosia da hora “perdida”, dos olhos cansados, da tinteiro entupida.
Terminei. Não sofri tanto assim.

18.5.15

Farinha.

Ela gosta de acompanhar o caminho da encomenda dos Correios. Chegou lá, já perto de cá, saiu para a entrega. Compra distraída – as duas.
Ele prefere molhar papel higiênico. Faz bolas e joga no teto do banheiro do restaurante. Ensinou o primo. Já miram os espelhos. Mijam nos cestos de lixo – impunes.
Otávio é sozinho, quieto. Não tem amigos imaginários. Basta em si. Costuma andar por aí com seu kit aventura na mochila das costas. Uma corda escorregadia, uma lanterna de respeito, o canivete.
O melhor amigo usa óculos, é gordinho. Tem muitos jogos de tabuleiro. A mãe troca-se na frente das crianças. Os bonequinhos ganham enredo, cenários no jardim de inverno e voltam para a caixa seguros.
A colega de trabalho usa vestidos curtos demais. Quer julgar, mas corre mais que as pernas finas e sofridas. Tem a mesa de trabalho desorganizada.
João é quatro. As letras e as cestas que estavam destinadas na sua vida. Esporte de pontos duplos, ele de artilheiro. Cansaço das metralhadoras, indecisão dos pés limitados.
Maria, sua filha. Desperta Luiz Melodia nos outros. Piano no alto. Cidade intacta, tensão flutuante sadia.
Todas as faces misturadas. Papéis preenchidos, sabidos, queridos. Bolo no forno. Fogo brando. Traga mais farinha.

17.5.15

O gato escritor.


A escrita é arte como as outras. Pega-se prática, firmeza e confiança nos movimentos. Caligrafia, gramática, leitura, experiências. Cópias, influências, um gato preto respirando forte ao lado – companhia do escritor. Jovens ainda – o gato e o escritor – mas estão aí. Um a escrever outro a tentar paciente não andar no caderno, não dar leves patadas na tinteiro. Conseguem. Dispersam, rodeiam, contudo, insistentemente, encarregam-se de suas bravas funções.

O gato é equilibrista. Sem receios passeia por altos fios com agilidade. Pula, se agarra, cai de pé.

Quem se mete a escrever tem algo de gato. As letras são finas, miúdas peças do mar de considerações, vaidades, tensões humanas. O escritor é curioso igual ao gato. Quer saber como é ver as coisas lá do alto. Para, posição segura de felino, as quatro patas no chão – pontua. O texto é sempre a corda bamba. Não há meio de saber como nem quando ventará, se algo assustará o gato e o equilíbrio se perderá. Por isso, eles vão alto. Procuram suas musas e alimentam-se pelo caminho. Curiosidade, coragem, pulgas e ventos fortes.

Porém, ah, porém, os dois nada são sem um ao outro. A história se conta – não se cria.


12.5.15

Jorge usa óculos.

Jorge usa óculos daqueles com o barbante de segurança ou de apoio no pescoço. Não tira muitos seus óculos nem os deixa cair. Acha o barbante bonito. Cara de escritor, gente séria.
Ele também gosta de usar chapéu panamá. Comprou para proteger sua cabeça do sol. Se pudesse usaria um chapéu mexicano. Aquele com as abas enormes. Contudo, exerce certa profissão mais séria que ele. Mais solene que seus óculos de barbantes. Só um pouco mais nessa última comparação.
Ainda, o mesmo Seu Jorge, usa barba. Barba jovem é verdade. De falhas novas, bagunças desconhecidas. Não harmoniza muito bem o crescimento dos pêlos com as donas tesouras e lâminas de barbear ou com o senhor barbeador. Embora, a sua mulher já tenha insistido e até certa vez cortado algumas pontas que entravam na boca dele.
Também outras coisas, porém as mesmas ideias.
Jorge mora na lua, diz o trecho da música. Esse não, se bem que gostaria de passar umas férias lá. O cara é apenas romântico. Com ele mesmo. Pensa que se se imaginar duende na Duendolândia realmente será esse ser fantástico. E é.
Somos todos.
Por que criar um itinerário para o trabalho e permanecer nele, sem quaisquer mudanças, durante anos? Desculpe-me (diz Jorge), mas tô fora. Se carro, ônibus, se bicicleta, a pé, se avião, barco, se cordas, pontes, se aquilo, aquiloutro. O homem veio para inventar, reinventar e destruir. Para inventar de novo. E de novo. Mudar.
Ah, não gosto de mudanças. Aprecio minha cadeirinha no meu gabinetinho, daquela minha cidade queridinha. Nããão. Jorge quer conhecer mais. Acredita que haja mais. Então, lê, relê, escreve. E não se contenta, mas tenta.
Jorge usa óculos.

5.5.15

Leite achocolatado.

Há certo tempo quero escrever um texto “e se” para a melhora da humanidade. Vivo ouvindo (e concordando) que se queremos ser felizes precisamos buscar também a felicidade do outro. Algo como “amar o próximo como a si mesmo” e “não faça aos outros o que não quer que façam a você”. Ocorre que as ideias para os “e se”s não fixam muito bem na minha cachola. Tentarei. Afinal, outro ensinamento diz que é fazendo que se aprende.
Penso na reação em cadeia. “E se” 1, “e se” 2, “e se” 3 e assim por diante. Boas práticas que acarretam outras e mais e pronto. Resultados. Falta a ideia a ser espalhada. Não qualquer uma. “A” sacada, “o” movimento que dará a efetiva pulsão para a melhora significativa da condição humana.
Talvez isso não exista.
Em uma conversa desses dias me disseram que há um inconsciente coletivo pairando entre as pessoas. Um ato distante poderia ser vivido na mente de outro indivíduo – há milhares de quilômetros. Diz-se que tudo já foi pensado ou feito. Não há nada mais para inventar ou fazer. O ser humano já teria esgotado toda sua criatividade. Discordo.
Um “e se” fácil de imaginar (você já deve ter tido ele) é o do um real. Precisamos trabalhar (de alguma forma, tenha certeza), seguir o sistema social em que vivemos e, suados, recebemos uns trocados. E se um milhão de pessoas colocassem um real na minha conta bancária na mesma hora? Poxa, com certeza há assim tantas pessoas (talvez até na minha própria cidade) que podem dispor de um mísero um real para depositar na minha continha. Isso não acontece. E provavelmente não acontecerá. Por que? Usaria bem esse um milhão. Sou um cara legal. Esqueça.
Ok. Posso pensar em um “e se” mais altruísta. E se conseguisse reunir dez mil cidadãos dispostos a doar um quilo de alimento não perecível à instituição de caridade ‘x’? Isso já parece mais provável. Talvez alguém já tenha conseguido. Não sozinho (ou sozinho mesmo), mas com a ajuda de dez ou quinze pessoas influentes. Com o auxílio de uma boa causa, como salvar a vida de determinada criança ajudada por essa entidade ou com um outro digno chamariz.
As pessoas estão aí. Existem boas medidas de solidariedade e conquistas pessoais (desde que boas). Podemos achá-las (as pessoas e essas boas medidas). E, veja bem, não esquecer exatamente isso – que não poderemos ter contentamento sozinhos, mas com os outros. E eles, fazendo parte da nossa alegria, estão dispostos.
Talvez seja isso, afinal. Os “e se”s sim existem, contudo são, e sempre serão, coletivos e cíclicos – como a vida.
(Outra coisa que acredito é que a vida nunca será (nem perto disso) um grande mundo de faz de conta com ‘felizes para sempre no final’. Desencana, meu caro. Todavia, claro, podemos aplainar melhor as arestas da nossa santa cadeira. Pode começar. “E se eu desse bom dia para o mala do meu vizinho?” Boa. Essa era a ideia do texto. Sujeito inteligente você.) 


3.5.15

João-de-barro II.

João é outro? Trocou paixões, tem mais auto-confiança. Conquistas frequentes. Lembra mal de certas épocas. Tenta esquecer? Temos limite de memória? Passou do ponto precisa registrar em cima? João mudou. E na mudança precisamos nos desfazer. Não por inteiros, mas pelo percentual adequado. 10%, 20% ou mesmo até 90%. Radicalismo, dirão. Muito 'ão' nunca foi problema para ele. Sempre achou a maioria complicada demais. Voltando, ele está preocupado. Não queria ter mudado isso ou aquilo, pensa. Quer visitar antigas práticas. Adia. De novo. João não era assim. Ia. Sim, é outro. Amanhã a mesma coisa. E tudo bem. Que bom. Está insatisfeito. 

Esse texto é uma homenagem às nossas lembranças. Cada momento, cada João. Mas, também ao nosso futuro. Porque, somos ao mesmo tempo o reflexo de ontem e a fôrma de amanhã.