15.1.17

Tensão da corda

Necessita o escritor de álcool e fumo, lia-se em sua porta. Desde que começara a receber visitas dos vizinhos e dos vizinhos dos vizinhos quis tirar proveito da situação à promessa de mais belas palavras.
Não era charlatão. Realmente, depois de disseminada a doença local trancara-se por dias na sua casa não só em respeito e durante a quarentena, mas também por mais tempo para escrever trabalhosas poesias sobre a terra d'antes.
A febre, a prostração impediram as tarefas da cidade e do campo. Foi um colapso e poucos ficaram ou sobreviveram ao mal súbito e incurável. Passado o surto tudo era triste, parecendo sequela da enfermidade.
Foi Luís, um dos poucos imunes, o argumentador ou, se preferir, o artista da reviravolta de Planalto Seco, nome de fundação da localidade d'onde a água só chegava de burro antigamente.
- Venham, venham. Estive no quarto não só chorando pelos que foram, pois nunca deixaram meu pensar e até mesmo ainda visitam meus sonhos. Vejo rostos descontentes, corpos pesados e espíritos tão secos quanto nosso barro. Deixem-me declamar algumas poesias e sei que irão refrescar os olhos e quem sabe reaver o vaso d'ontem.
Duas, três pessoas. No dia seguinte voltava. E assim foi por vinte dias seguidos. Sucessivamente também os novos ouvintes, em número e atenção. Desde o primeiro dia deixava à disposição seus livros de poemas (já tantos) e um chapéu com moedas e notas pré-inseridas no buraco da cabeça. Uma hora, duas ficava Luís a cantar versos sem parar. Contava sobre a vida de menino na vendinha do pai, da descarga elétrica sofrida por Baltazar no dia de Natal, da criança afogada no balde ou da primeira festa de aniversário da cidade. Só que descontava tudo. Quem havia vivido os acontecimentos mesmo se perguntava se teria sido do jeito que lembrava ou do poema. Nem ligavam, tão bonitas as palavras misturadas, as rimas melodia.
Nunca se casara. Não teve filhos. Seus amores de juventude não venceram seu encarceramento em si mesmo. Sempre nos bares depois do trabalho público e de volta neste depois da cama. Lia muito. Não era ébrio. Entre os dias vulgares tomava muita água e o balcão de muito só a conversa. Bebeu mais entre versos ou prosa. E com os chapéus pesados não economizou na bebericagem. Vinho, cervejas importadas que trazia o alemão da esquina, cachaças várias, saquê do Seu Ivan, e até rum do pirata do seu primo.
Não demorou e pediu exoneração. Disse já estar na hora de dedicar todo seu esforço às letras. A ordem do gabinete era má influência ao verbo livre. "Como sobreviverá, Seu Luís?"
Sobreviver sobrevivia. O saldo já era maior. Sua arte era admirada na região e não foi só um turista de longe seu cúmplice. Findo o canto frasal recebia quem quisesse conhecer sua casa e seu jardim de flores, já que sempre, dos livros, pendia flor. Dizia que por mais duro o verso não poderia faltar humanidade e o ser homem gosta de flores.
Porém, as moedas só davam para a comida, casa e cuidados com a saúde. As águas das linhas não tinha.Começou a comer menos. A anágua da escrivaninha furada. Barba por fazer, cabelo seboso. Ainda ia na praça, mas só para emudecer. Começou a fumar. Nunca havia colocado um cigarro desses na boca. Sem mais flores.
Tiveram a ideia de divulgar sua extensa obra na internet para celebrar a riqueza local. A festa anual de tempos cidadinos teria a presença dele, o mais célebre cidadão, autor de combinações literárias de tirar qualquer um de amargores e trazer de volta o ânimo, convidava o evento.
Não foi.
A intenção não era egoísta. Queriam sim o amigo novamente nas gentes, nos calços de cada planaltense.
Virou lenda. Toc toc. Não respondia. Só. saia por recados: ou come o pé ou o arroz com chuchu mané; hoje não sei, amanhã quem tem coberta nova é rei. Construíra ele mesmo uma engenhoca que ao mesmo tempo rodava um manuscrito de papel que imitava lousa e se empurrado abria uma grande caixa que girava em seu próprio eixo.
Viveu por cinco anos assim. Continuou escrevendo e quando a porta deixou por dois dias as mesmas palavras encontraram Luís no quintal mato alto -, inerte.
Não adiantaram os pedidos (todos respondidos). Apenas girava o pórtico de uma a três vezes ao dia e ele mesmo reparava qualquer coisa na casa. "Se não há chave Philips, então os pensamentos são vís."
Peregrinos da literatura vinham à cidade com os melhores vinhos e tortas de maçã. "Vejo a menina hoje sã. De certo comeu torta de maçã." Faziam serenatas em frente ao bunker de Luís e choravam por ele. Havia de novo tristeza na terra. "Ouço seus lamentos e nem sei mais dos meus tormentos."
Nem ninguém soube. Foi mesmo de um dia para o outro que começou a reclusão. Primeiro dele mesmo, depois da presença dos outros. Os artistas devem ter dessas coisas, enxergam a vida de outra forma. "Se ainda houver tinta na folha, por favor apenas a segunda recolha." Foi o último verso da lousa do poeta.

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