16.11.16

Tenha um diário. A experiência de meia vida em diários.


São quatorze anos de diários, de trinta e um de vida.
Comichão por um mundo que parecia mágico. E é. Pensava que seria fantástico, único. E foi. E continua sendo.
Escrever um diário não tem nada do que o filme ‘Segundas intenções’, o desenho ‘Doug’ ou o seriado ‘Mundo da lua’ pintaram para o Piero daquele tempo e, sim, o influenciaram para a caneta constante. É muito melhor. O encontro não é com substâncias ilícitas, relações proibidas, paqueras da escola, conquistas esportivas, viagens à lua, vitórias no vídeo game. Não. É uma aventura diferente –, com você mesmo. De dentro pra dentro. A mais assustadora, emocionante e recompensadora partida (com volta).
E que seja ressaltada a palavra: ‘escrever’. Há registros por meio de desenhos, fotos, música, filmes, sons em geral. Nada como a escrita, porém. É a mais intimista das artes. E, desculpem os artistas outros (todos vaidosos, pressuposto da criação artística), mas também é a mais difícil e bela. Porque, demanda um mínimo de razão (deve, ao menos, haver um significado preso a alguma língua). Já outras artes tendem à abstração infinita para conquistarem originalidade e são voltadas para um público menos exigente e volumoso. É mais formosa, pois, não diz, sugere. E o leitor segue ou não sua ideia.
Voltemos ao diário. Minha percepção hoje desses anos todos escrevendo sobre minha vida é que embora sinta que ainda não escrevi um livro que preste, meus cadernos preenchidos suprem essa falta. Sem dúvida. São cerca de mil páginas de diferentes tamanhos, conteúdos, épocas, temas, humores, sentimentos, pessoas, desafios, lugares etc.
Se um bom livro é uma boa história contada de uma forma interessante com certeza a vida vale um tomo. A minha vale.
Contudo, há muito mais nessa tal ideia de diário. Uma prática tão antiga quanto o próprio homem, pode apostar. Idealizada para meninas bonitinhas, como a Anne Frank e seu duro relato de uma sobrevida em um esconderijo dos nazistas durante a II Guerra Mundial, também conquista o sexo masculino em diferentes idades. Escrever sobre si não tem pudor. Devia ser, aliás, estimulado pelos pais.
E o que há de tão atraente? Para os jovens, talvez, a brincadeira da criação diária. Há muita energia e vontade de fazer algo diferente. Escrever um diário remete a juntar tijolos e subir um arranha-céu. Cada página preenchida é um piso acabado. O caderno cheio é o prédio realizado, o imponente frente ao campo inexplorado.
Essa a palavra: explorar. A página em branco é convite. A frase pós frase é escada. A aspereza do papel rebarba. O jovem vence. O adulto cansa. Olha para os cadernos empilhados, as cores cansativas e tem vontade de acender um fósforo. Resiste ao trabalho tacanho. Seu dia tem minutos e códigos de barras. Lembra do sentimento pelo diário. Senta e tece o texto sobre ele.
Entende? Esse o twist do diarista. Dispõe. Todo dia. Só abrir o caderno. Seja a página em branco, seja a vencida. Há anos. Graças a Deus.
Claro, conte com leitores. Por mais que lacre a criança, haverá pássaros pequenos e inofensivos sedentos pelo néctar. Uma técnica é não citar nomes reais, não assinar (como se a caligrafia não fosse a própria assinatura do condenado) ou não escrever coisas muito pessoais. Tentei e abandonei todas elas logo no início. Diário não é romance. É exame profundo. Livro de filosofia. Escreva sobre o pato, mas quem vê o pato não é a pata.
Teste. Inove. Persista. Uma grande obra não é feita por acaso. Mude. Escreva aleatoriamente. No verso, ou não. Com lápis, caneta tinteiro, esferográfica, lápis de cor. Cole, sim. Desenhe. Registre metas. Volte a elas. Descreva o céu. O ar. O fato de viver. Diga que conseguiu tal coisa. Que sicrano nasceu. Beltrano morreu. Desenvolva tudo. Ou não. Resuma com uma palavra. Misture. Comece outro caderno. Ceda a mera vontade de escrever qualquer coisa. Ou desabafar o nervo ciático.
Tenha certeza que muita coisa boa será criada, registrada. O poeta Pessoa, felizmente, estava certo quando afirmou que ‘tudo vale a pena quando a alma não é pequena’. Tudo. Por isso estamos aqui.
Escreva um diário, mané. Vale a pena. Onde mais você pode chamar alguém de Mané e sair impune dessa?! (Risos.) Ou registrar que gosta de lamber assado de lagarta com mel? Que naquele dia nasceu um mentiroso. Sobre como detesta ou ama fulana. Nas suas terras, nas suas terras. Sem medo, sem freios. Agora.




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