São quatorze anos de
diários, de trinta e um de vida.
Comichão por um mundo
que parecia mágico. E é. Pensava que seria fantástico, único. E foi. E continua
sendo.
Escrever um diário não
tem nada do que o filme ‘Segundas intenções’, o desenho ‘Doug’ ou o seriado ‘Mundo
da lua’ pintaram para o Piero daquele tempo e, sim, o influenciaram para a
caneta constante. É muito melhor. O encontro não é com substâncias ilícitas,
relações proibidas, paqueras da escola, conquistas esportivas, viagens à lua, vitórias
no vídeo game. Não. É uma aventura diferente –, com você mesmo. De dentro pra
dentro. A mais assustadora, emocionante e recompensadora partida (com volta).
E que seja ressaltada a
palavra: ‘escrever’. Há registros por meio de desenhos, fotos, música, filmes,
sons em geral. Nada como a escrita, porém. É a mais intimista das artes. E,
desculpem os artistas outros (todos vaidosos, pressuposto da criação
artística), mas também é a mais difícil e bela. Porque, demanda um mínimo de
razão (deve, ao menos, haver um significado preso a alguma língua). Já outras
artes tendem à abstração infinita para conquistarem originalidade e são
voltadas para um público menos exigente e volumoso. É mais formosa, pois, não
diz, sugere. E o leitor segue ou não sua ideia.
Voltemos ao diário. Minha
percepção hoje desses anos todos escrevendo sobre minha vida é que embora sinta
que ainda não escrevi um livro que preste, meus cadernos preenchidos suprem
essa falta. Sem dúvida. São cerca de mil páginas de diferentes tamanhos,
conteúdos, épocas, temas, humores, sentimentos, pessoas, desafios, lugares etc.
Se um bom livro é uma
boa história contada de uma forma interessante com certeza a vida vale um tomo.
A minha vale.
Contudo, há muito mais
nessa tal ideia de diário. Uma prática tão antiga quanto o próprio homem, pode
apostar. Idealizada para meninas bonitinhas, como a Anne Frank e seu duro
relato de uma sobrevida em um esconderijo dos nazistas durante a II Guerra
Mundial, também conquista o sexo masculino em diferentes idades. Escrever
sobre si não tem pudor. Devia ser, aliás, estimulado pelos pais.
E o que há de tão
atraente? Para os jovens, talvez, a brincadeira da criação diária. Há muita
energia e vontade de fazer algo diferente. Escrever um diário remete a juntar
tijolos e subir um arranha-céu. Cada página preenchida é um piso acabado. O
caderno cheio é o prédio realizado, o imponente frente ao campo inexplorado.
Essa a palavra:
explorar. A página em branco é convite. A frase pós frase é escada. A
aspereza do papel rebarba. O jovem vence. O adulto cansa. Olha para os
cadernos empilhados, as cores cansativas e tem vontade de acender um fósforo.
Resiste ao trabalho tacanho. Seu dia tem minutos e códigos de barras. Lembra
do sentimento pelo diário. Senta e tece o texto sobre ele.
Entende? Esse o twist do diarista. Dispõe. Todo dia.
Só abrir o caderno. Seja a página em branco, seja a vencida. Há anos.
Graças a Deus.
Claro, conte com
leitores. Por mais que lacre a criança, haverá pássaros pequenos e inofensivos
sedentos pelo néctar. Uma técnica é não citar nomes reais, não assinar (como se
a caligrafia não fosse a própria assinatura do condenado) ou não escrever
coisas muito pessoais. Tentei e abandonei todas elas logo no início. Diário
não é romance. É exame profundo. Livro de filosofia. Escreva sobre o pato, mas
quem vê o pato não é a pata.
Teste. Inove. Persista.
Uma grande obra não é feita por acaso. Mude. Escreva aleatoriamente. No verso,
ou não. Com lápis, caneta tinteiro, esferográfica, lápis de cor. Cole, sim.
Desenhe. Registre metas. Volte a elas. Descreva o céu. O ar. O fato de viver.
Diga que conseguiu tal coisa. Que sicrano nasceu. Beltrano morreu. Desenvolva
tudo. Ou não. Resuma com uma palavra. Misture. Comece outro caderno. Ceda a
mera vontade de escrever qualquer coisa. Ou desabafar o nervo ciático.
Tenha certeza que muita
coisa boa será criada, registrada. O poeta Pessoa, felizmente, estava certo
quando afirmou que ‘tudo vale a pena quando a alma não é pequena’. Tudo. Por
isso estamos aqui.
Escreva um diário, mané.
Vale a pena. Onde mais você pode chamar alguém de Mané e sair impune dessa?!
(Risos.) Ou registrar que gosta de lamber assado de lagarta com mel? Que
naquele dia nasceu um mentiroso. Sobre como detesta ou ama fulana. Nas suas
terras, nas suas terras. Sem medo, sem freios. Agora.
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