21.11.16

capítulo II.3 o oito


Gostava da dez. Que gostava do um. Quem não gosta do um? Que gostava da quatro. Que gostava do um, também. E a cadeia fica mais feliz, porém menos interessante que a de Drummond. E quem é mais? Somente diferente. E basta. Acho.
Não era lá muito doce. Se convocada a reunião não aparecia. Depois o encontravam em flor de lótus na cachu. Que? Esqueceu? Se fosse para colecionar compromissos tinha ficado lá atrás do balcão. Não. Não concordo.
E sumia. Onde? Por aí. Dizia que estava indo para o mundo. Tchau, vou para o mundo. Voltava. Dois, três, vinte dias. Mas, retornava.
Nove: fora. Expulsão. Não aguento mais esse cara. Não quer que cresçamos. Quer mais é zoar. Qualquer hora, qualquer dia. Não é bom para nós.
Dez: discordo. Ele começou conosco. Topou a mudança. Há nele o necessário. E o tempo dele está reservado. Não devemos apressá-lo. Mais chances, mais paciência. É cedo para qualquer decisão.
Noite. Pela segunda vez em sete meses oito fica até mais que o esperado no arranjo das armadilhas das beiradas do terreno. Uma vez por semana dois eram escalados para checar as amarrações e os encaixes. O trabalho era invencível e no dia seguinte haveria uma verificação extra e rápida por mais dois. Eram já mais de vinte e nove armadilhas complexas e diferentes com mecanismos eletrônicos simples, mas que exigiam cansativa e atenta manutenção manual.
Dez terminava a instalação número dezesseis, a última. O escuro já permanecia o suficiente para a volta. Oito foi até ela. Terminando? Ainda aqui? Sim, mas já vou indo. Espero-te? Não. Ainda vou longe. Ficou um pouco. Conversaram. Você acredita? Claro. Não. Por que permanece? Sabe que reparam suas dificuldades e poucos creem na sua persistência. Sei. Vivo muito o momento. Como agora.
Tentou beijá-la. Virou o rosto. Você não pode. Disseram que quando sai é para cuidar de outros interesses. Um dia não volta mais. Não quero. Meu lugar é aqui, livre, consciente e segura. Quando vimos aquele filme eu lembro que disse que achava besteira que precisávamos seguir apenas um mestre. Disse que não podemos nos contentar. O melhor é mais, é infinito, é contraste. Discordo. Gosto de rotina. Da junta mesma na sala arrumada toda terça-feira.
Fez uma careta. Deu às costas. Tinha muita dificuldade de ser rejeitado. Mas, ficou feliz. Na última vez às sós com ela não vencera a dúvida e discordara dele mesmo, o que é mais triste que o álcool.
Duas semanas e nova saída do oito dos limites da propriedade. Um dia depois, alcoolizado, chamou a “numeraiada” de dominó e perguntou o motivo da distância entre eles. Se quiserem sucesso comecem a engatar as peças e derramem os desejos no fim da fileira. Vence o jogo quem tiver mais combinações. Uma sociedade seletiva é fracasso. Mas, passarei a noite aqui.

A maioria cala. Alguns não.


17.11.16

Foto lida


Sempre gostei de textos descritivos. Balzac é um mestre na descrição. São cenas bem contadas e a forma termina maior que a própria ideia.
Estou com o projeto de “fotogistrar” momentos de Vinhedo. Sentado em um banco, da janela, em pé no balcão. Enquanto não realizo essa experiência treino com essa foto. Veremos se fica bom.


As bolsas falsas são minhas. Pensava fossem más, porém combinam bem com as marcas do sorriso. Belos dentes, lábios finos, quase escondidos. Cabelo revolto, alegria retrato. Ao fundo do quadro há muita luz que mais alveja seu rosto. Brinquedos ao canto. O rabo da pelúcia, a bola feliz. Estampa de sorriso. O bebê veste outra face contente. Ela pisca um olho e tem parca dentição. Cores várias. O quarto, enfim, é preenchido: por diversão. As bochechas novas são saudáveis. Há a natural protuberância favorável ao mamar. Pescoço quase nada. A cabeça é juntinha ao tronco. E, sim, desproporcional. Gigante. Fica quase de pé. Debruça-se para a foto. Transborda toda sua vida para nós. Confia. É 
emocionante.

16.11.16

Tenha um diário. A experiência de meia vida em diários.


São quatorze anos de diários, de trinta e um de vida.
Comichão por um mundo que parecia mágico. E é. Pensava que seria fantástico, único. E foi. E continua sendo.
Escrever um diário não tem nada do que o filme ‘Segundas intenções’, o desenho ‘Doug’ ou o seriado ‘Mundo da lua’ pintaram para o Piero daquele tempo e, sim, o influenciaram para a caneta constante. É muito melhor. O encontro não é com substâncias ilícitas, relações proibidas, paqueras da escola, conquistas esportivas, viagens à lua, vitórias no vídeo game. Não. É uma aventura diferente –, com você mesmo. De dentro pra dentro. A mais assustadora, emocionante e recompensadora partida (com volta).
E que seja ressaltada a palavra: ‘escrever’. Há registros por meio de desenhos, fotos, música, filmes, sons em geral. Nada como a escrita, porém. É a mais intimista das artes. E, desculpem os artistas outros (todos vaidosos, pressuposto da criação artística), mas também é a mais difícil e bela. Porque, demanda um mínimo de razão (deve, ao menos, haver um significado preso a alguma língua). Já outras artes tendem à abstração infinita para conquistarem originalidade e são voltadas para um público menos exigente e volumoso. É mais formosa, pois, não diz, sugere. E o leitor segue ou não sua ideia.
Voltemos ao diário. Minha percepção hoje desses anos todos escrevendo sobre minha vida é que embora sinta que ainda não escrevi um livro que preste, meus cadernos preenchidos suprem essa falta. Sem dúvida. São cerca de mil páginas de diferentes tamanhos, conteúdos, épocas, temas, humores, sentimentos, pessoas, desafios, lugares etc.
Se um bom livro é uma boa história contada de uma forma interessante com certeza a vida vale um tomo. A minha vale.
Contudo, há muito mais nessa tal ideia de diário. Uma prática tão antiga quanto o próprio homem, pode apostar. Idealizada para meninas bonitinhas, como a Anne Frank e seu duro relato de uma sobrevida em um esconderijo dos nazistas durante a II Guerra Mundial, também conquista o sexo masculino em diferentes idades. Escrever sobre si não tem pudor. Devia ser, aliás, estimulado pelos pais.
E o que há de tão atraente? Para os jovens, talvez, a brincadeira da criação diária. Há muita energia e vontade de fazer algo diferente. Escrever um diário remete a juntar tijolos e subir um arranha-céu. Cada página preenchida é um piso acabado. O caderno cheio é o prédio realizado, o imponente frente ao campo inexplorado.
Essa a palavra: explorar. A página em branco é convite. A frase pós frase é escada. A aspereza do papel rebarba. O jovem vence. O adulto cansa. Olha para os cadernos empilhados, as cores cansativas e tem vontade de acender um fósforo. Resiste ao trabalho tacanho. Seu dia tem minutos e códigos de barras. Lembra do sentimento pelo diário. Senta e tece o texto sobre ele.
Entende? Esse o twist do diarista. Dispõe. Todo dia. Só abrir o caderno. Seja a página em branco, seja a vencida. Há anos. Graças a Deus.
Claro, conte com leitores. Por mais que lacre a criança, haverá pássaros pequenos e inofensivos sedentos pelo néctar. Uma técnica é não citar nomes reais, não assinar (como se a caligrafia não fosse a própria assinatura do condenado) ou não escrever coisas muito pessoais. Tentei e abandonei todas elas logo no início. Diário não é romance. É exame profundo. Livro de filosofia. Escreva sobre o pato, mas quem vê o pato não é a pata.
Teste. Inove. Persista. Uma grande obra não é feita por acaso. Mude. Escreva aleatoriamente. No verso, ou não. Com lápis, caneta tinteiro, esferográfica, lápis de cor. Cole, sim. Desenhe. Registre metas. Volte a elas. Descreva o céu. O ar. O fato de viver. Diga que conseguiu tal coisa. Que sicrano nasceu. Beltrano morreu. Desenvolva tudo. Ou não. Resuma com uma palavra. Misture. Comece outro caderno. Ceda a mera vontade de escrever qualquer coisa. Ou desabafar o nervo ciático.
Tenha certeza que muita coisa boa será criada, registrada. O poeta Pessoa, felizmente, estava certo quando afirmou que ‘tudo vale a pena quando a alma não é pequena’. Tudo. Por isso estamos aqui.
Escreva um diário, mané. Vale a pena. Onde mais você pode chamar alguém de Mané e sair impune dessa?! (Risos.) Ou registrar que gosta de lamber assado de lagarta com mel? Que naquele dia nasceu um mentiroso. Sobre como detesta ou ama fulana. Nas suas terras, nas suas terras. Sem medo, sem freios. Agora.