Meu
coração batia muito forte. A sensação, antes de alegria, de entusiasmo, passou
a desespero, mal estar. O pico de novo e novamente conquistado, já não era mais
interessante. Acordei.
Era
um fim de tarde de dia muito quente e de intenso trabalho repetitivo e
estafante. Muitas tarefas de apertar botões, furar papéis, misturadas com
outras tantas de pensar em soluções jurídicas e nas consequências práticas na
vida dos clientes. Já tinha feito tudo isso, com não tão grandes variações,
inúmeras vezes. Estava, enfim, estressado e cansado.
Fui
para o bar – beber. Uma, duas, três, e devia ter parado por aí. Quatro, cinco.
Vou para casa, de carro. Leis não assustam muito o sujeito se não forem
fiscalizadas. Cheguei em casa sem sinal de qualquer bafômetro por perto.
Cansado,
tonto, trôpego, deitei. Por pouco não fiquei pelo chão da sala.
Não
adormeci. Adormecemos quando vamos dormir. Com a bebida é diferente. Ela nos
leva ao berço –, à força mesmo. Apaguei.
Caí.
Foi rápido, e logo vi a grama se aproximando do meu nariz. Quando meu corpo
parou no ar, à cerca de trinta centímetros do solo.
Em
princípio não conseguia me mover. O corpo esticado em forma de estrela, comecei
a descobrir um movimento de balança. Depois, pude juntar os membros e flutuar
para frente, devagar. A velocidade ia aumentando, aumentando.
Era
um campo aberto, com poucas árvores baixas e raros cupinzeiros. No começo, sem
grande controle, topei com alguns matos mais altos na cara e desviei, sabe
como, bem rente de uma pequena árvore que parecia uma oliveira.
Aos
poucos consegui controlar a velocidade e aprendi a subir. Subir, subir, subir.
Opa, que gelo. Se cruzava uma nuvem, a temperatura ficava ainda menor e me
molhava um pouco.
Não
cheguei a pensar o porquê, onde estaria, nada. Voar, sonho de todos, de tão
extasiante, bastava por si só.
Logo
sobrevoei um pequeno povoado, de casas térreas que beiravam um longo rio.
Baixei o vôo e lá estavam senhoras lavando roupas nas margens, homens semeando
os terrenos das casas e, breca, breca, breca, uma senhorita tirando a roupa
para se banhar na queda d’água.
Não
olhamos sempre para cima. No caminho, pedras, raízes, cobras e nossos próprios
cuidadosos passos.
Parei
um pouco distante, a suas costas. O suficiente para impedir uma visão direta.
Não queria ser visto e impedir a continuidade de movimentos tão belos e
desejados pelos homens.
Uma
peça, duas. Nua. Água fria, corrente.
O
banho foi demorado. Acostumado com seus movimentos, fechar e abrir dos olhos,
fui ousado e arrisquei visões laterais, frontais, rasantes.
Banho
tomado, secar o corpo na pedra. Olhos cerrados.
Sempre
não sabia quando ela abriria os olhos e para onde olharia. Ficava muito tenso
em tomar esse ou aquele caminho. Em descer mais um pouco, o suficiente para não
ser visto.
Quando
alcançava o objetivo e via os seios e outras partes da jovem de perto e ainda
mais de perto, suava frio, queria tocá-la, e não entendia como ela nunca abria
os olhos ou, se abria, eu conseguia escapar do seu olhar tão eficazmente. Será
que realmente ela poderia sentir minha presença?
Resolvi
ir embora. Contive as tentações (que não eram poucas). Não queria estragar o
jogo já no primeiro tento.
Mais
sobrevôos. Nada de muito interessante. A experiência da pequena cachoeira não
me saia da cabeça. Anoiteceu.
Tinha
voado bastante. Conseguia manter a velocidade, aumentá-la, diminuí-la. Descer,
subir. Voar de costas, de lado.
Cheguei
à concentração maior de pessoas. Cidade com pequenos prédios, um clube,
comércios variados, fábricas.
À
noite, mais relaxado, permitia aproximações mais arriscadas nas coberturas dos
prédios com casais namorando e na piscina do clube sempre invadida por
estudantes com calor.
Logo
descobri, depois de um grande arrepio quando uma estudante gritou ao abrir seus
olhos a poucos centímetros da minha face (estava prestes a beijá-la), que eu
também tinha o dom da invisibilidade. (O grito foi por causa de um cachorro que
havia mordido forte seu pé e a acordara.)
Logo
depois, afinal, eu era invisível, tentei puxar o rabo de um gato. Não pude.
Também
não podia atravessar paredes, mas entrava e saía de muitos imóveis por janelas
abertas. Via de tudo. Crimes violentos, artistas trabalhando, empresas
descartando lixo irregularmente, brigas de quintais, ninhos de pássaros muito
bonitos (os pássaros foram os primeiros a não me ver, e eu lá achei estranho,
mas tão diferentes são dos humanos que tinha medo de conferir se funcionaria
perante estes).
As
novidades e as palpitações foram diminuindo. Não precisava dormir, comer,
beber. Apenas existia. Mais olhos do que qualquer outra coisa. A míngua de
desafios, comecei a ficar triste. O mundo era meu, mas eu era apenas seu
espectador, um voyeur.
Não
foi muito difícil voltar para aquele ponto inicial, em que meu nariz quase foi
massacrado pela dureza da terra. Sentei em um cupinzeiro. Minhas mãos abertas
cobriram meu rosto, tamparam meus olhos. Estava cansado de tanto ver. Tirei as
mãos, depois de longo tempo e sinceras lágrimas. Breu.
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