9.8.14

O Voyeur.



Meu coração batia muito forte. A sensação, antes de alegria, de entusiasmo, passou a desespero, mal estar. O pico de novo e novamente conquistado, já não era mais interessante. Acordei.
Era um fim de tarde de dia muito quente e de intenso trabalho repetitivo e estafante. Muitas tarefas de apertar botões, furar papéis, misturadas com outras tantas de pensar em soluções jurídicas e nas consequências práticas na vida dos clientes. Já tinha feito tudo isso, com não tão grandes variações, inúmeras vezes. Estava, enfim, estressado e cansado.
Fui para o bar – beber. Uma, duas, três, e devia ter parado por aí. Quatro, cinco. Vou para casa, de carro. Leis não assustam muito o sujeito se não forem fiscalizadas. Cheguei em casa sem sinal de qualquer bafômetro por perto.
Cansado, tonto, trôpego, deitei. Por pouco não fiquei pelo chão da sala.
Não adormeci. Adormecemos quando vamos dormir. Com a bebida é diferente. Ela nos leva ao berço –, à força mesmo. Apaguei.
Caí. Foi rápido, e logo vi a grama se aproximando do meu nariz. Quando meu corpo parou no ar, à cerca de trinta centímetros do solo.
Em princípio não conseguia me mover. O corpo esticado em forma de estrela, comecei a descobrir um movimento de balança. Depois, pude juntar os membros e flutuar para frente, devagar. A velocidade ia aumentando, aumentando.
Era um campo aberto, com poucas árvores baixas e raros cupinzeiros. No começo, sem grande controle, topei com alguns matos mais altos na cara e desviei, sabe como, bem rente de uma pequena árvore que parecia uma oliveira.
Aos poucos consegui controlar a velocidade e aprendi a subir. Subir, subir, subir. Opa, que gelo. Se cruzava uma nuvem, a temperatura ficava ainda menor e me molhava um pouco.
Não cheguei a pensar o porquê, onde estaria, nada. Voar, sonho de todos, de tão extasiante, bastava por si só.
Logo sobrevoei um pequeno povoado, de casas térreas que beiravam um longo rio. Baixei o vôo e lá estavam senhoras lavando roupas nas margens, homens semeando os terrenos das casas e, breca, breca, breca, uma senhorita tirando a roupa para se banhar na queda d’água.
Não olhamos sempre para cima. No caminho, pedras, raízes, cobras e nossos próprios cuidadosos passos.
Parei um pouco distante, a suas costas. O suficiente para impedir uma visão direta. Não queria ser visto e impedir a continuidade de movimentos tão belos e desejados pelos homens.
Uma peça, duas. Nua. Água fria, corrente.
O banho foi demorado. Acostumado com seus movimentos, fechar e abrir dos olhos, fui ousado e arrisquei visões laterais, frontais, rasantes.
Banho tomado, secar o corpo na pedra. Olhos cerrados.
Sempre não sabia quando ela abriria os olhos e para onde olharia. Ficava muito tenso em tomar esse ou aquele caminho. Em descer mais um pouco, o suficiente para não ser visto.
Quando alcançava o objetivo e via os seios e outras partes da jovem de perto e ainda mais de perto, suava frio, queria tocá-la, e não entendia como ela nunca abria os olhos ou, se abria, eu conseguia escapar do seu olhar tão eficazmente. Será que realmente ela poderia sentir minha presença?
Resolvi ir embora. Contive as tentações (que não eram poucas). Não queria estragar o jogo já no primeiro tento.
Mais sobrevôos. Nada de muito interessante. A experiência da pequena cachoeira não me saia da cabeça. Anoiteceu.
Tinha voado bastante. Conseguia manter a velocidade, aumentá-la, diminuí-la. Descer, subir. Voar de costas, de lado.
Cheguei à concentração maior de pessoas. Cidade com pequenos prédios, um clube, comércios variados, fábricas.
À noite, mais relaxado, permitia aproximações mais arriscadas nas coberturas dos prédios com casais namorando e na piscina do clube sempre invadida por estudantes com calor.
Logo descobri, depois de um grande arrepio quando uma estudante gritou ao abrir seus olhos a poucos centímetros da minha face (estava prestes a beijá-la), que eu também tinha o dom da invisibilidade. (O grito foi por causa de um cachorro que havia mordido forte seu pé e a acordara.)
Logo depois, afinal, eu era invisível, tentei puxar o rabo de um gato. Não pude.
Também não podia atravessar paredes, mas entrava e saía de muitos imóveis por janelas abertas. Via de tudo. Crimes violentos, artistas trabalhando, empresas descartando lixo irregularmente, brigas de quintais, ninhos de pássaros muito bonitos (os pássaros foram os primeiros a não me ver, e eu lá achei estranho, mas tão diferentes são dos humanos que tinha medo de conferir se funcionaria perante estes).
As novidades e as palpitações foram diminuindo. Não precisava dormir, comer, beber. Apenas existia. Mais olhos do que qualquer outra coisa. A míngua de desafios, comecei a ficar triste. O mundo era meu, mas eu era apenas seu espectador, um voyeur.
Não foi muito difícil voltar para aquele ponto inicial, em que meu nariz quase foi massacrado pela dureza da terra. Sentei em um cupinzeiro. Minhas mãos abertas cobriram meu rosto, tamparam meus olhos. Estava cansado de tanto ver. Tirei as mãos, depois de longo tempo e sinceras lágrimas. Breu.   



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