Muito bem. Segue abaixo, o texto prometido. Bom, ruim, muito bom? Cliquem, comentem, interajam. Abraço. Muito obrigado mesmo pelos votos.
A nuvem rosa era azul. Não sua coloração, rosácea mesmo, mas
seu humor. Azul azul amanhecia e percorria o céu. Não naquele dia, porém.
As nuvens dificilmente estão sós. De existência tênue,
costumeiramente se ajuntam para prolongar sua beleza. Elas não gostam de
desaparecerem não.
Nossa nuvem é a nuvem Rosa. Nascida em entardecer na Serra
São José, quando conheceu o Seu Zé tinha apenas cinco minutos de clarão.
Era dia seco, quente e abafadão. A Rosa estava sozinha lá em
cima. E, porque não sabemos, pousada bem em cima da chácara do Zé.
O Zé era mais um desses cumpadi que nós da cidade temos
aquela invejinha. Acordava com os primeiros raios, tomava café de coador, broa
de milho, leite quente fresco, queijo mineiro. À tarde, doce de leite, mais
café fresco, pão de queijo, polvilho. O tempo parece que corre mais lento, que
é mais longo. Das últimas luzes do sol tirava seu sono, percebia a mudança dos
sons da natureza, dormia até o astro acordá-lo de novo. O bisavô, o vô, o pai,
de outros nomes (Joaquim, Abreu, João), com iguais histórias de roça. Poucas
posses, muito trabalho, ritmo do fumo de corda. Planta, cuida, nasce e come.
Nossos amigos naquela tarde se cruzaram. Na verdade, não foi
bem cruzamento, já que o Zé, a essa hora, como sempre, estava na rede do copiar
olhando a São Domingos com um olho só. Foi mais um esbarrão. Daqueles de
destino, sabe?!
Foi assim que a nuvem Rosa conheceu o Zé. Por acaso, no
ocaso. Fixou-se naquele ponto do céu baixo, segurando-se nos ramos de uma
árvore pequena. E era como se estivesse sido criada para ele. Já o Zé, com o
sono à galope, não deu muita bola à Rosa. Viu que não viu, dormiu.
Bem que o povo daquela pequena vila serrana comentou no dia
seguinte: “viram quela nuvi bunita ontem d’arde?!”, ficou parara bem uns cinco
minuto só ela lá no arto, nunquitinvisto isso, sô.”
“Vi sim”, disse Seu Zé, já di pé no bar em frente à igreja.
“Ela paricia qui tava de oio nimim, coisi di doido. Fiz que não fiz e fechei os
zóio, achei mió. Quando fecho os zóio eu sumo. Num é assim?! hehehe hehe he.”
Quanto à Rosa, sem olhos, com milhares de partículas de lá
para cá e acolá, ao invés, havia ficado uns, na verdade, sete minutos estática
lá. Se podia não podia, mas ficou. Dia seguinte, tão quente quanto, lá
novamente ela, dessa vez, sobre o quintal do Zé. Baixa, escondida entre dois
morrinhos e uma dúzia de árvores médias. Bem que só dava para o Zé vê-la.
Viu. O olho aberto abriu mais um cadinho e logo fechou. Medo
o Zé sentiu. “Cá que essa nuvi pareceu de novo? Vô abri num vô abri?” Abriu.
Tava ela um pouquinho mais baixa. Mais perto da altura do telhado da casinha
térrea. “Oi.” “Oi?! Falou, quem falou? Onde tá tu, tatu?”
É bem verdade que Seu Zé tinha bebido pouco a mais queledia.
Calor, papo baum, a história da nuvi. Bebeu sim. Mais isso deixa a história
melhor. Nunca saberemos se o “oi” e os próximos fatos realmente aconteceram ou
se não passaram de imaginação do Zé.
Dia seguinte, mesmo tempo seco. Pó-poeira. Seu Zé contou para
os cumpadi sobre o “oi”. Não deram corda, conheciam o már da cachaça. Pálpebras
baixas, cara rosada-avermelhada, sorriso fácil, cansaço, muito torpor para um
homem só. Zé incucado manteve os dois olhos bem abertos naquele fim de tarde.
Espera, espera. Sono, dormiu.
Acordou com frio. Abriu devagarinho os olhos e o ar estava
esfumaçado. “Eita, não pode ser queimada. Esse frio, meu Pai do céu?! E tá tudo
meio rosa, ixe.” Saiu da rede, passos até o quintal, viu a varanda metida em
neblina. Fora de lá, quente. “É quela nuvi doida. Vô é pra perto das vaca, lá é
mió, lá é mió.” Foi.
Nova tarde. Zé distraído, Zé beberrão, esqueceu da Rosinha e
dormiu pesado na rede. A Rosa gostou. Observou o Zé, observou e observou.
“Que tá molhada essa grama? Tudo seco, sozinho, seco, triste,
e meu quintal assim. A nuvem!”
E quela tardinha foi, dizem, única dentre tantas. Ele não
bebeu. Esperou sentado e ela surgiu. “Oi.” “Oi”, disse o Zé. Ele podia ser
desconfiado, supersticioso, e gostar da água de alambique sim. Porém, Zé era
corajoso. Não logo. Mas a coragem vinha. Preguiçosa, mas vinha. Coragem daquela
que vem com sentido, convicção, forte mesmo. “Sou a Rosinha.” “Aqui é o Zé.”
“Não tem medo?” “De cobra, resfriado, revórvi e da seca. Nuvi é baum, é
bunita.” Não disseram mais nada.
Passaram-se três dias. Nosso personagem passou eles “nas
nuvens”. Do trabalho para a rede, sem bar. Achou ótimo. Ele não era alcóolatra.
Bebia pouco, só que logo estava alterado. Há pessoas assim. Se continuava
passava bastante mal. Bebia pouco.
No quarto dia, após quela tardinha boa: “sentiu minha falta,
Zé?” “Sabia que ia vortá. Por que sozinha?” “Por pouco tempo. Logo virão meus
parentes. Céu baixo, confusão, desaparecerei. A vida das nuvens é curta. Mesmo
assim, como as borboletas, somos preparadas e conhecemos todo o ciclo por qual
passaremos. As respostas, as perguntas e as charadas do mundo.” “Eita, conte
pra eu, intaum.” “Não posso. Gostei de você, mas não posso. A nuvem não pode,
mas brincalhona que é, interage com os seres humanos. Transforma-se em
carneirinho, rosto, cavalo, baleia, urso, dentre tantas outras formas. Segue
carros, caravanas e até conversa com caras especiais como você. Mas é só, e
breve.” “Estou com sono, vô drumi. Chove ni mim não dona nuvi.”
Acredite se quiser, o Zé dormiu. Dormiu bem. A Rosa, cobrindo
a grande claridade da lua, deixou a temperatura boa para ele. Fresco o
suficiente, nem muito, nem pouco.
Seu Zé não viu mais a Rosinha. Dia que veio manheceu úmido,
nublado. Depois do café quente, choveu. O Zé parou na beira do copiar, sorriu,
e choveu também.