25.3.15

Exercício de conto. Sem chão.


1) Sorteio de cinco palavras de jornal:
- Horizontes
- Educação
- Naturais
- Cidade
- Local

2) Escolha de uma frase “e se”:
E se descobrisse que serei pai da pessoa mais importante?

Conto:

Sem chão.

Construí minha casa em local de solo bastante instável. Já são três anos sem deslizamentos, mas a Defesa Civil diz que o morro pode ruir a qualquer momento. Tenho que deixar meu lar amanhã.
Ontem minha mulher completou oito meses de gravidez. Ganhamos muito pouco para sustentar uma criança. Qual educação poderei dar para esse ser inocente?
Hoje, no caminho do trabalho vi um gato preto morto. Estava no meio da ciclovia. Pergunto-me se quando voltar para casa ele ainda estará lá. Dessa vez é um gato. Geralmente é lixo. As pessoas jogam lixo pela janela de seus carros e os arbustos da via de bicicletas acumulam detritos.
A cidade, por isso, é suja. E se eu colocasse o gato em um saco e jogasse numa daquelas caçambas de rua? Fico triste de vê-lo lá jogado à espera da limpeza urbana.
Amanhã continuarei no meu barraco. A Defesa Civil deve voltar com a polícia. Os soldados me puxarão pelo braço e eu resistirei moralmente e fisicamente. Irei preso por resistir à ordem estatal. Minha companheira continuará à espera do nosso filho.
Sem moradia perco minha dignidade. Tudo isso muito me preocupa. Deixo meu posto na fábrica, atravesso a avenida, o terreno baldio do fim da rua, e sento na terra nua, escondido nas sombras naturais de médias árvores. Choro. Vejo os horizontes estreitos, minha vida sem esperanças.
“Seu filho é a pessoa mais importante”, ouvi. Susto. Abro os olhos rapidamente, procuro a fonte, mas estou sozinho. (Até hoje não sei se partiu de fora ou mesmo da minha própria mente naquele momento conturbado.)
Fico sentado no chão por mais alguns minutos. Talvez cinco ou dez. Não poderia, nem se quisesse, esquecer a frase, “seu filho é a pessoa mais importante.” Meu filho?! Sou um pobre sujeito. Amanhã perco meu chão –, literalmente. Não pode ser.
Levanto-me, quero ir até o bar tomar cerveja. Não vou. Grande porcaria a bebida. Volto para casa. Minha mulher está descansando, trabalha meio período. “Saí mais cedo do trabalho, estou muito estressado, como faremos amanhã?” “Não nos encontrarão, estaremos trabalhando.” “Voltarão no fim de semana.” “Daremos um jeito, fique tranquilo.”
No dia seguinte fui trabalhar. Voltei para casa, minha mulher conversava com um funcionário da Defesa Civil – na entrada da favela, ao lado de um carro carregado com nossas coisas. Iríamos para a chácara dos patrões dela – como caseiros. Fomos.
Oito meses e três semanas. Contei para ela sobre o que ouvi naquele dia sentado na terra. “Por que a surpresa?” “O que há de mais importante do que nosso filho?” “Não mais existimos simplesmente. Você como pai, eu como mãe, ele como filho, nós como três somos um, somos outro, novo.” “Vai trabalhar homem, já é hora.”



8 comentários:

  1. Muito bom! Sucesso!

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  2. Muito bacana..

    Me faz pensar em como muitas vezes nossos problemas se resolvem de forma diferente da esperada...

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    1. Boa, Marcus. Eu diria que quase sempre é assim, hehehe.

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  3. Respostas
    1. Poxa, Giu. Seu melhor comentário, hehe. Abraço, Pi.

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Ou: pi_cap@hotmail.com

Obrigado.